Uma Visão de Deus em Fernando Pessoa
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Uma Visão de Deus em Fernando Pessoa


Fernando Pessoa, o poeta maior da língua portuguesa, dividiu-se em vários "eus", em vários "outros" para poder expressar com maior liberdade (não só por isso, mas também por isso) o universo infinito de emoções, de ideias, de filosofias, de percepções que conviviam e conflituavam incessantemente em seu ser. Pessoa era tão imenso que não cabia em si próprio. Tinha tantas facetas que não podia se mostrar com um rosto só. Com seis anos de idade, o gênio português, já havia criado um heterônimo: Chevalier de Pas. Com o tempo, criou dezenas de outros. 

Bernardo Soares é um dos seus heterônimos mais conhecidos, e onde Fernando Pessoa melhor realizou a sua prosa poética, no fenomenal Livro do Desassossego. É desse livro que retiro uma visão de como o heterônimo compreende a existência de Deus. Não se pode dizer que seja, necessariamente, a mesma visão de Fernando Pessoa ele mesmo, pois o poeta deu liberdade de pensamento e de expressão aos seus heterônimos, ele se desdobrou em outros que não ele sem deixar de ser ele. Que o próprio leitor tire suas conclusões. O trecho é longo, mas vale a pena:

Livro do Desassossego, trecho 254:

"Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de não sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o autor da frase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os animais inferiores, em que se não divisa inteligência, ou mais que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores — falar e pensar são apenas novos instintos, menos seguros que os outros porque novos. E a frase do escolástico, tão justa em sua beleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de tudo.


Nunca compreendi que quem uma vez considerou este grande fato da relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire não descreu. Compreendo que, atendendo a certos fatos aparentemente desviados de um plano (e era preciso saber o plano para saber se são desviados), se atribua a essa inteligência suprema algum elemento de imperfeição. Isso compreendo, se bem que o não aceite. Compreendo ainda que, atendendo ao mal que há no mundo, se não possa aceitar a bondade infinita dessa inteligência criadora. Isso compreendo, se bem que o não aceite também. Mas que se negue a existência dessa inteligência, ou seja, de Deus, é coisa que me parece uma daquelas estupidezes que tantas vezes afligem, num ponto da inteligência, homens que, em todos os outros pontos dela, podem ser superiores; como os que erram sempre as somas, ou, ainda, e pondo já no jogo a inteligência da sensibilidade, os que não sentem a música, ou a pintura, ou a poesia.


Não aceito, disse, nem o critério do relojoeiro imperfeito nem o do relojoeiro sem benevolência. Não aceito o critério do relojoeiro imperfeito porque aqueles pormenores do governo e ajustamento do mundo, que nos parecem lapsos ou sem-razões, não podem, como tal, ser verdadeiramente dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um plano em tudo; vemos certas coisas que nos parecem sem razão, mas é de ponderar que, se há em tudo uma razão, haverá nisso também a mesma razão que há em tudo. Vemos a razão, porém não o plano; como diremos, então, que certas coisas estão fora do plano que não sabemos o que é? Assim como um poeta de ritmos sutis pode intercalar um verso arrítmico para fins rítmicos, isto é, para o próprio fim de que parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo que do ritmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode intercalar o que nossa estreita [ilógica?] considera arritmias no decurso majestoso do seu ritmo metafísico. 
Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevolência. Concordo que é um argumento de mais difícil resposta, mas é-o só aparentemente. Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não podendo por isso afirmar se uma coisa é má ou boa. O certo, porém, é que uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer descrer na bondade do Criador. Ora o erro essencial deste argumento parece residir no nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e nosso igual desconhecimento do que possa ser, como pessoa inteligente, o Infinito Intelectual. Uma coisa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A distinção é talvez sutil ao ponto de parecer sofística, mas o certo é que é justa. A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência do mal pode não ser aceita. Confesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a nossa imperfeição."
Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa
(Na imagem, a pintura "O Ancião dos Dias", de William Blake.)



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