Textos e Mensagens
Consumismo e Futuro Planetário
Comento, em parte, sobre um assunto abordado pelo colunista do jornal Correio do Povo, Juremir Machado da Silva. Não é a primeira vez que o faço. Apesar de geralmente apreciar e concordar com as colunas do Juremir, que sem dúvida é um ótimo escritor, de grande inteligência e capaz de profundas análises sociais, há momentos em que, na ânsia de contrariar o senso comum de que “antigamente era melhor”, exagera, a meu ver, em alguns de seus “otimismos” com relação à sociedade atual. Já realizei um contraponto ao seu otimismo aqui. Volto a tratar do assunto. Embora não seja exatamente o mesmo, a relação é bastante próxima.
Juremir, nas colunas dos dias 30/4 e 1º/5, aborda a questão dos valores atuais da sociedade e do seu individualismo. Afirma o jornalista que os valores não estão tão perdidos ou ausentes assim. E que em muitos pontos estamos melhores como seres humanos, mencionando a preocupação com os animais, a luta contra o preconceito racial, a ecologia. Afirma também que se por um lado o individualismo tem o seu aspecto de irresponsabilidade, com o culto ao prazer e à satisfação do desejo, há também o individualismo responsável, que atua como um freio ao outro individualismo.
Não discordo totalmente do colunista. É claro que não há somente pontos negativos em nossa sociedade atual, em nada há somente o negativo ou somente o positivo. E concordo também com ele de que vivemos uma época de grandes paradoxos. Sem dúvida que sim. Porém, o que parece que Juremir não percebe ou não quer perceber, a despeito de toda a sua cultura e inteligência e do embasamento em autores consagrados, são as consequências a médio e a longo prazo de tamanho individualismo em nossa civilização. E do que está por trás dele.
Toda essa preocupação atual com problemas sociais e ambientais é real, autêntica, ou é apenas um sintoma de um egoísmo mascarado e do culto à aparência? Juremir menciona a crescente preocupação com animais. Sim, ela existe. Porém, por outro lado, nunca aniquilamos tantas vidas animais na história da humanidade, seja com a poluição, com o tráfico de animais, com os atropelamentos nas estradas, com a destruição infrene de habitats, com os testes em laboratórios, enfim. E toda essa preocupação ecológica, no fundo, tem adiantado de quê? Será que isso não passa, em geral, apenas de uma moda, uma forma de se “sentir moderno”, de aparentar preocupação? E ainda que muitos se preocupem, o que realmente fazem? O que podem fazer? É suficiente o que pode ser feito? O que está sendo feito? Produzimos cada vez mais lixo, poluímos cada vez mais, consumimos os recursos naturais de forma ilimitada. Ou como se eles fossem ilimitados. E quem, em seu individualismo, seja responsável ou não, está realmente preocupado em consumir menos e poluir menos? Raríssimos. Quais os verdadeiros sinais de que isso pode vir a ser resolvido nos próximos anos? Como exatamente reverter o quadro?
E ainda se mencionarmos a luta antirracial, até que ponto ela expressa uma real mudança da sociedade? O preconceito está de fato deixando de existir ou ele está sendo sufocado porque está se tornando “feio” ser preconceituoso perante a sociedade da aparência? E quanto ao crescente preconceito contra árabes e outros povos (inclusive brasileiros) nos EUA e na Europa? Claro, dirão que é melhor um preconceito sufocado do que um preconceito ostensivo. É. Porém, em um momento isso pode explodir.
O grande problema da humanidade atual é a falta de sentido para a vida. Nunca a humanidade esteve tão vazia de ideais e de sonhos. Procura-se, então, esse sentido na própria busca incessante do prazer, em atender aos mais diversos desejos e necessidades psicológicas, muitas vezes fabricadas pela própria sociedade. E o objetivo da vida passa a ser a busca em si, e não o resultado dela. É a ditadura do consumo. Se for lançado um modelo novo de celular, de micro, de carro, todos devem obter o seu, a qualquer custo. Se não, o que é que vão dizer? É a ditadura do ser igual a todos. O que os outros fazem, são ou têm, os outros também têm que fazer, ser ou ter, ou serão esquecidos, ridicularizados, deixados de lado. É claro que contra todo esse estado de coisas surgem reações. Mas sempre bastante minoritárias.
Aí se encontra a terrível questão. Como atender a esse objetivo sem ser por um consumismo sem limites?
O que percebo em muitos de nossos intelectuais fãs do ser humano é aquela expectativa de que a humanidade resolverá por si só todos os seus problemas sem a necessidade da ocorrência de “medidas extremas”. Parece que para eles o planeta é um bem, um patrimônio da humanidade, e que os homens têm absoluto poder e controle sobre ele. O crescimento populacional e, com ele, em uma progressão geométrica, o do consumo, ainda é um gravíssimo problema, fatal, eu diria, para o qual não foi apresentada solução alguma, apenas paliativos, ineficazes, em geral, e ao qual nossos intelectuais, em sua maioria, evitam abordar.
Um dia não haverá possibilidades físicas de nos sustentarmos. As nações ricas somente são ricas graças ao consumismo desenfreado de todos em todas as partes do mundo. Aí estão as multinacionais para provar, que ajudam a enriquecer seus países de origem servindo-se de nosso consumismo que não dá sinais efetivos de que irá regredir.
O otimismo de alguns intelectuais contemporâneos assemelha-se muito, a meu ver, àquele otimismo dos finais do século XIX, quando se acreditava, devido aos impressionantes progressos da ciência, que o século XX seria o da solução de todos os problemas, que não haveria doenças, miséria, guerras, violência, enfim. É uma confiança demasiada na espécie humana. Quando se trata de se perceber, de se captar as decadências psíquicas das quais sofre a humanidade, muito mais eficiente do que nossos sensos intelectivos são nossos sensos artísticos. É a arte que percebe e identifica e expressa tudo aquilo que não está bem com o ser humano. Porque capta a essência das questões, não por frias análises racionais, mas pela vivência psíquica direta. Alguns gênios o fizeram com inacreditável antecedência, como é o caso de Bosch, de Poe, de Baudelaire. Os artistas são a antena da humanidade. Em nossos dias, na música clássica, Penderecki expressa um cenário de total pessimismo quanto ao futuro da humanidade. Apenas para deixar um exemplo fora da literatura e da pintura.
Para finalizar, lembro que o universo sempre busca o equilíbrio em todas as coisas. A humanidade faz parte do universo. E, menos ainda, faz parte do planeta. Pertence a ele. E ele não permitirá que o desequilíbrio causado pela humanidade o destrua. Gostaria que a própria humanidade alcançasse este equilíbrio. Porém, não acredito que o faça. Crer que a sociedade evitará que o consumismo prossiga com a destruição planetária até que atinjamos níveis insustentáveis, é, para mim, uma utopia. A humanidade está para a Terra assim como a Terra está para o seu sistema solar. E um planeta não pode destruir o sistema solar ao qual pertence. O planeta se encarregará de restabelecer a ordem, como sempre o fez. E não é necessário acabar com a humanidade para tanto. Apenas colocá-la em seu devido lugar. Alguém dirá que, falando dessa forma, até parece que há alguma espécie de inteligência no planeta. E por que não poderia haver?
“Então os meus versos têm sentido e o universo não há-de ter sentido?
Em que geometria é que a parte excede o todo?
Em que biologia é que o volume dos órgãos
Tem mais vida que o corpo?”
Alberto Caeiro (um dos heterônimos de Fernando Pessoa)
(Na imagem, detalhe da asa direita do tríptico "O Jardim das Delícias", de Hieronymus Bosch.)
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