O REGRESSO
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O REGRESSO


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À medida que o carro galgava os últimos quilómetros, sentia apoderar-se de si uma ansiedade pouco usual. Tinha saído da aldeia natal com tenra idade, e sempre procurara guardar a memória dos sítios onde crescera em feliz despreocupação. Pela sua mente desfilavam recordações e acontecimentos, resquícios de um passado quase irreal, emergindo dum tempo em que a vida se regulava pelo ciclo das estações.
Quando dobrou a grande curva da Volta, o casario, até aí escondido pelas colinas, surgiu-lhe de truz. Parou o carro e saiu lá para fora, deixando-se invadir pelo forte aroma dos pinheiros. Como em muitas outras aldeias do interior, as velhas casas de outrora foram submergidas por dezenas de vistosas vivendas, consequências do sonho emigrante, regressado ao velho torrão de origem para passar uma vida tranquila, sem mais preocupações que o cuidar da imprescindível horta. Ao centro era bem visível a altaneira torre da igreja, cujo repicar de sinos continuava a ser o marco regulador da vida daquelas gentes.
Entrou na aldeia, com o carro em marcha lenta, percorrendo a estrada que acompanhava o percurso da ribeira, vinda dos lados da Estrela. Os seus olhos indagavam velhos lugares, cenários onde, há muito tempo, um pequenote atrevido sorvia a vida num espaço resguardado pela geografia dos montes e pelas leis dos mais velhos. Passou junto à ponte medieval, cenário das primeiras tentativas de pescador, onde, toscamente munido duma linha de costura e de um alfinete a servir de anzol, tentara em vão a sua primeira captura, para gáudio dos próprios peixes. Logo a seguir surgia o lameiro, uma zona plana e ervada na margem direita da ribeira, palco de alguns conflitos, nas grandes tardes das férias grandes, entre as lavadeiras e a garotada irrequieta: aquelas porque precisavam do espaço para secar a roupa, estes porque não havia sítio mais maneirinho para a disputa de intermináveis jogos de futebol. Ao fundo via-se o açude, cujas águas represadas proporcionavam grandes banhos retemperadores nas tardes cálidas de Verão. Era ali, no Portal do Meio, que todas as gerações da aldeia aprendiam a nadar, num estilo pouco vistoso mas eficaz.
Continuou a marcha e subiu a rua que levava à igreja, que se desenhava, lá em cima, de forma opulenta. A meio da rua virou à esquerda, em direcção ao bairro onde nascera. Passou pela renascentista capela das Almas, com um amplo largo onde muitos santos foram festejados ao som da Banda Filarmónica local, e chegou ao velho fontanário da Fonte de Cima, que agora só servia para um ou outro burro se dessedentar. A rua que o vira crescer ficava logo a seguir, e decidiu deixar ali o carro.
Quando se apeou olhou em volta. Uma velha de lenço preto espreitava a uma janela, mas na rua não se via vivalma. Apenas um rafeiro curioso dava sinal de si, rosnando, desconfiado, para aquele intruso. A ruína de algumas casas era evidente, mas deixando ainda resquícios dum viver que se esvaíra demasiado depressa. Longe ia o tempo em que os dias decorriam, buliçosos, marcados pela azáfama do cultivo dos campos. Havia sempre muita terra para esgravatar, que a sobrevivência das famílias, com muitas bocas para alimentar, assim o exigia. Os mais novos começavam cedo a ajudar, e dividiam o tempo entre a escola, as brincadeiras e a iniciação à aprendizagem dos trabalhos agrícolas.
Quando chegou ao local da sua demanda, em vão procurou a casa onde nascera, onde o balcão de xisto era referência de toda a rua. Sentiu um aperto no peito, e virou costas a um mamarracho de janelas de alumínio que tinham construído no seu lugar. O encantamento tinha-se desvanecido com aquela visão. Ainda tentou preservá-lo, metendo pelo caminho do Ribeiro, cenário onde os irmãos mais velhos o tinham iniciado nos segredos das descobertas dos ninhos (Eu sei um ninho de melro! - gritou ele, na primeira descoberta) mas já não se conseguiu recompor.
Quando entrou no carro sabia que nunca mais voltaria. Já ali não pertencia. Mas iria continuar a conservar dentro de si, qual tesouro de incalculável valor, a imagem da casa de balcão de xisto com uma varanda de madeira, onde o velho Luís, ao serão, lhe contara tantas histórias de encantar.
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